quarta-feira, 2 de março de 2011

Um dia com Rodolfo Finotrato

É, quando acordei de manhã, devia ter imaginado que o dia não seria bom. Veja só minha situação atual: estou no meio de um acidente de trânsito em um cruzamento movimentado, vários policiais militares estão atirando contra mim e, de algum lugar a 500 metros de onde estou, há um sujeito mirando em minha cabeça com um rifle de caça.
Talvez você poderia pensar que esse é meu fim, mas não é bem assim. Todos esses fatores - os policiais querendo meu sangue, o acidente, o franco atirador mirando em mim, não passam de distrações. Sim, distrações! Tudo isso foi arquitetado por um velho paleolítico miserável que não vai com a minha cara e tenta, dia após dia, arrancar meu couro.
Esse velho e eu somos pessoas incomuns. Assim como alguns outros gatos pingados na face da Terra, nós temos certos... "poderes", por assim dizer,
que nos permitem distorcer levemente certas leis da natureza.
Não, não é bem assim. Alguns de nós possuem poderes assombrosos, coisas como causar parada cardíaca em outras pessoas, gerar tremores de terra, fazer chover, incendiar coisas, respirar debaixo d'água, etc. Muitas vezes certos atletas que se destacam absurdamente em suas modalidades são alguns "de nós" que, mesmo sem saber, conseguem realizar façanhas sobrehumanas.
Já fomos chamados de "mutantes", "metahumanos", "monstros", "aberrações" e várias outras coisas no decorrer dos séculos, mas o termo mais correto para nos descrever é o de "psiônicos". Usamos nosso cérebro quase à totalidade, conseguindo assim gerar efeitos impossíveis aos demais seres humanos. É a velha teoria da mente sobre a matéria, porém posta em prática.
Mas voltando ao caso do maracujá de gaveta que me odeia, o fato é que ele era o prodígio da galera psiônica da nossa região antes de eu surgir. Nossos poderes se revelam na puberdade e, assim que eu atingi meus 15 anos, comecei a fazer pedrinhas levitarem ao meu redor, para divertimento do meu casal de gatos, que ficava brincando de caça-las.
O caso é que, quando atingi 20 anos, descobri uma organização secreta composta somente de psiônicos (na verdade, ELES me descobriram) e lá comecei a aprender como controlar e aprimorar meus poderes. O fugitivo de asilo que agora quer me matar era o chefão do lugar.
Aos 25 anos superei tranquilamente o velho. Nenhum poder dele é capaz de me atingir - e olha que ele faz uma pá de coisas!
Mas é assim mesmo, a geração mais nova vem e substitui a anterior. É o ciclo natural, certo? Não para ele. Por isso quer tanto me matar. Invejinha básica, entende?
Bom, agora que você está um pouco mais a par da situação, deixe-me voltar ao momento exato em que estou sendo alvo das armas de mais de 15 policiais, além dos dois veículos incendiados ao meu lado estarem dando sinais de que vão explodir, e do franco atirador pronto para mandar um projétil em direção à minha cabeça...
Vejamos... agora é meio-dia em ponto, uma rua movimentada do centro da cidade, o sol de rachar fazendo todo mundo suar em bicas. Os policias não estão nem um pouco preocupados com os condutores dos dois veículos acidentados, pelo simples fato de estarem sendo controlados mentalmente pelo vizinho do Matusalém. É, controlar totalmente uma pessoa é fichinha para ele. Para esnobar, ele controla uns bons 20 de uma vez.
Fez os motoristas baterem de frente na tentativa de me acertar, colocou o atirador no topo de um prédio com visão privilegiada para esse ponto - vai saber desde quando aquele coitado estava lá esperando para que eu aparecesse - e ainda mandou todos os policiais militares das redondezas descarregarem suas armas em cima de mim.
Esse é o motivo pelo qual o velho caiu em desgraça na organização: em seu desejo insano de me mandar conhecer Jesus mais cedo, ele começou a usar seus poderes abertamente - e essa é uma regra de ouro de nossa organização e de todas as outras do mundo todo às quais somos afiliados: devemos manter segredo quanto às nossas habilidades, para não gerar o terror na mente das pessoas comuns. Muitas agências governamentais de vários países, inclusive da nossa Pátria Amada Brasil, sabem da existência de psiônicos, e em geral nos caçam para realizarem experiências ilegais.
Mas tudo bem, vamos lá. Os disparos dos policiais não me acertam. Criei uma bolha telecinética ao redor do meu corpo que interfere sensivelmente na trajetória dos projéteis assim que eles se aproximam de mim. Para um observador não psiônico, a impressão que dá é que os policiais me erram o tempo todo por milímetros de distância.
Os dois veículos em chamas são outro problema. Consigo sentir os sinais vitais dos dois condutores, mas ambos parecem bastante feridos. Como notei que algumas das (muitas) pessoas que estão assistindo a tudo isso já ligaram para o socorro médico, só preciso me preocupar em não desviar os disparos contra eles, e evitar também que as chamas cheguem aos tanques de combustível dos veículos.
Por último, mas não menos importante, há o franco atirador. Eu possúo um sentido semelhante à ecolocalização de golfinhos e morcegos - se você não souber o que é isso, procure no "Pai dos Burros", o Google - e, modéstia a parte, esse sentido é MUITO desenvolvido. Posso correr de olhos vendados em um dia de chuva e sentir quase tudo o que está acontecendo em um raio de 1km ao meu redor. Graças a essa habilidade tão útil, saberei o momento exato em que ele vai puxar o gatilho.
Meu campo telecinético não vai ser suficiente para desviar esse disparo, pois o projétil do rifle dele vai ser mais preciso, rápido e pesado que os disparos dos policiais. Esse franco atirador, portanto, é o grande trunfo do ex-garçom dos faraós do Egito contra mim nesse momento. E temo ainda que, quando ele fizer o franco atirador disparar, aconteça alguma outra coisa para me distrair do disparo. Ou, talvez, o disparo seja a distração para algo ainda piór. Cara, como eu odeio esse velho e seus planos cretinos!
Opa, o fogo está se alastrando. Mais dois campos telecinéticos ao redor dos tanques de combustível resolve. Isto está ficando complicado de manter. E agora uns cinco policiais sacaram cacetetes e vão vir para cima de mim, mesmo com os companheiros ainda atirando. O velho quer me fazer usar poderes abertamente, provavelmente por que há várias pessoas fotografando e filmando toda essa loucura. Daqui a pouco o Youtube vai estar fervendo de videos com títulos do tipo: "Acidente e loucura policial em Londrina, norte do Paraná".
Lanço uma onda mental em direção aos cinco atacantes, e eles literalmente desmaiam. Quando tenho contato visual direto com meus alvos, dificilmente eles resistem a esse poder. Quanto mais perto de mim eles estão, mais fácil de fazer! Ah, o atirador puxou o gatilho! Tenho poucos milisegundos para fazer algo a respeito.
Com um esforço mental considerável, transformo o campo que me protegia numa espécie de catapulta. Os espectadores dizem um "hóóó" coletivo. Os policiais param de atirar - sinal de que por essa, nem o bode velho esperava. Eu vejo o chão se distanciar. Minha mente ferve com a possibilidade de me estatelar com a queda. Fica difícil manter as bolhas que estão protegendo os tanques de combustível das chamas. Começo a cair. Tento antecipar o próximo ataque do senhor dentadura e me surpreendo em não captar nada. Finalmente percebo onde ele estava o tempo todo: no teto de um shopping center próximo. Ele sorrí para mim e desaparece no ar - o miserável consegue se deslocar no espaço com irritante facilidade.
Com sua partida, os policias militares são liberados do transe e param de atirar. Eles ficam olhando para os lados aturdidos, tentando entender como vieram parar ali e por que estão vendo um acidente de transito e colegas desmaiados.
Como não preciso mais me preocupar com tiros, alivio minha queda aumentando a resistência do ar abaixo de mim. Isso cansa muito minha massa cinzenta! Ah, vejam só, uma equipe de televisão chegou e já está apontando a câmera para meu rosto. O repórter, do tipo sensacionalista, diz ao microfone que sou "o pivô de todo o pandemônio causado no centro da cidade". Mal sabe ele que ler lábios é natural para um psiônico. E agora acho que entendo tudo. O que o velho queria, no fim, era só queimar meu filme com a comunidade psiônica, forçando-me a usar habilidades em público. Quero só ver a cara dele quando assistir aos telejornais hoje a noite. Desenvolvi um truque novo desde o último ataque dele a uma semana. Com pouca concentração, consigo distorcer a luz próxima a mim com relativa perfeição. O tempo todo eu estava "vestindo" a aparência dele, até mesmo com seus belos dentes amarelados. Só ele não notou, por estar preocupado em me localizar exclusivamente através de ecolocalização, ao mesmo tempo que se ocultava de mim.
Hora de puxar o carro daqui. Não consigo me teletransportar como ele, mas consigo ficar invisível que é uma beleza. Não sem antes sufocar as chamas, com bolhas mais resistentes. Sem várias coisas para processar ao mesmo tempo, fazer isso é suave.
É, velhinho. Pode vir quente que eu estou fervendo. Te odeio.